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28-11-2024

Jornada de trabalho no Brasil e os movimentos de reivindicação por tempo livre

Bianca Briguglio, Cecília Reis, Renan Augusto Moraes Conceição | Labor Movens & Alba Sud

Recentemente, movimentos reivindicando a diminuição da jornada de trabalho ganharam força e o Brasil passa a viver um momento de ebulição em razão da pauta de mais tempo livre e extinção de escalas de trabalho injustas. São as jornadas pelo fim da escala 6x1.


Crédito Fotografía: Renan Conceição.

No Brasil, com a redemocratização do país após 20 anos de ditadura militar, uma nova constituição foi elaborada para concretizar direitos que haviam sido suprimidos ou usurpados da população. Assim nasceu a Constituição Nacional de 1988. Nela, ficou estabelecida uma jornada de trabalho não superior a 8 horas diárias e 44 horas semanais. O que era para determinar o máximo da jornada de trabalho no Brasil passou a ser, efetivamente, a jornada padrão. Recentemente, movimentos reivindicando a diminuição da jornada de trabalho ganharam força e o Brasil passa a viver um momento de ebulição em razão da pauta de mais tempo livre e extinção de escalas de trabalho injustas.

O 15 de Novembro e o Movimento Vida Além do Trabalho

No dia 15 de novembro de 2024, feriado nacional no Brasil, dia da Proclamação da República, um grande movimento de trabalhadores foi às ruas, em várias cidades do país, reivindicar pela diminuição da jornada de trabalho e a extinção de formas de exploração trabalhista que impedem uma vida com tempo para descanso e lazer. A organização dos atos de protesto foi liderada por um movimento chamado de Vida Além do Trabalho (VAT), que, através da deputada federal Erika Hilton, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), levou ao Congresso Nacional uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para diminuir a duração da jornada de trabalho, garantindo mais tempo livre aos trabalhadores.

Rick Azevedo, vereador recém-eleito para a cidade do Rio de Janeiro pelo PSOL, é um ex-atendente de farmácia, criador do VAT, que se originou da revolta de Rick com a jornada de trabalho intensa e extenuante a qual era submetido, conhecida como 6x1. Essa escala é um modelo em que uma pessoa trabalha por seis dias seguidos e recebe um dia de folga. Esse padrão é exaustivo e prejudica a qualidade de vida de quem atua em setores como atendimento em lojas de shopping centers e hotelaria. Azevedo, cansado de não ter tempo para descansar, estudar, ficar com a família e mesmo encontrar amigos, passou a publicar vídeos para o Tik Tok pedindo pela extinção dessa escala.

Pouco mais de um ano depois, o VAT levou às ruas do Brasil um número expressivo de trabalhadores, motivados pela articulação política de Erika Hilton, que colocou o tema em alta e causou uma ebulição no país. A pauta pela diminuição da jornada de trabalho e mais tempo livre para os trabalhadores acabou gerando uma união poucas vezes vista no Brasil nos últimos 10 anos, aproximando pessoas de ideologias muito conflitantes em razão dos direitos trabalhistas.

Como reação, muitas entidades patronais, políticos, banqueiros, herdeiros, bilionários e grande mídia se apressaram em se posicionar contrários à PEC, anunciando que a medida irá quebrar o país e piorar a vida dos trabalhadores. Isso fez com que, praticamente de um dia para o outro, a luta de classes se mostrasse inteiramente e deixasse evidente à classe trabalhadora quem é que defende, de fato, seus direitos e quem atua contra, mantendo o sistema exploratório em vigência.

A PEC e o Trabalho no Brasil

Tramita na Câmara dos Deputados a PEC nº 174/2023, que busca alterar a jornada máxima de trabalho e extinguir a escala 6x1. A proposta visa assegurar dois dias consecutivos de folga após cinco dias de trabalho. A Constituição de 1988 define uma jornada legal de até 44 horas semanais, distribuídas em 8 horas diárias de segunda a sexta-feira e 4 horas aos sábados. O texto apresentado pela deputada federal propõe uma alteração no inciso XIII, do artigo 7° da Constituição Federal, que passaria a estabelecer “duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e trinta e seis horas semanais, com jornada de trabalho de quatro dias por semana, facultada a compensação de horários e a redução de jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho”.

Um levantamento publicado pela revista Carta Capital, com base em dados do mercado de trabalho formal brasileiro de 2022, mostrou que dois terços dos contratos vigentes naquele ano estabeleciam jornada superior a 40 horas semanais. Isso significa que, respeitado o limite formal de 8 horas de trabalho diárias, em todos esses contratos os trabalhadores estavam submetidos à escala 6x1. O levantamento também mostrou que 65% desses trabalhadores têm remuneração inferior a dois salários-mínimos. Por outro lado, considerando exclusivamente o setor de serviços e comércios, esse é o que possui o percentual mais elevado de trabalhadores nessa faixa salarial, correspondente a 81,67%.

Especialmente no setor de serviços, não é incomum que predomine a jornada de 48 horas semanais, em que os/as trabalhadores/as cumprem a jornada completa por seis dias e descansam apenas um. Além disso, a folga aos domingos é objeto de negociação coletiva entre as empresas e sindicatos, ou entre as chefias e os funcionários. Nesse processo, os/as trabalhadores/as têm pouco poder de barganha, e o dia de folga costuma ser imposto, muitas vezes desconsiderando as necessidades dos/as trabalhadores/as.

A legislação trabalhista permite o trabalho aos domingos, sobretudo em setores como o comércio e serviços, mas institui que o/a trabalhador/a tenha ao menos um domingo de folga por mês. Para quem trabalha aos domingos, a legislação exige que as horas trabalhadas sejam compensadas com uma folga em outro dia da semana. Quando essa compensação não é possível, o trabalhador deve receber um adicional correspondente ao trabalho em dia de repouso, geralmente pago como hora extra com um adicional de 100%.

Também são comuns os casos de trabalhadores que não conseguem folgas aos finais de semana e que, geralmente, não trabalham às segundas-feiras, nas quais muitos estabelecimentos não abrem, como acontece nos negócios de alimentos e bebidas. Vale lembrar, ainda, que em um mercado de trabalho fortemente marcado pela informalidade, como é o caso brasileiro, a realidade pode ser ainda mais penosa, já que nesses casos não há obrigação legal com relação aos limites de dias e carga horária trabalhados.

Fuente: Renan Conceição

No setor de turismo e alimentação, a escala 6x1 é amplamente adotada para atender à intensa demanda de serviços, especialmente em restaurantes, bares, hoteis e outros estabelecimentos que operam todos os dias da semana, principalmente aos finais de semana e feriados. Privilegiar as necessidades do setor e o atendimento aos clientes, todavia, tem um aspecto negativo que recai sobre os trabalhadores. Muitas vezes, a folga semanal é variável, o que significa que o/a trabalhador/a não tem a autonomia para agendar nenhum compromisso até que seja divulgada a escala semanal ou mensal. Não é incomum que se trabalhe por mais do que seis dias seguidos, devido à demanda de trabalho ou planejamento de turnos. Na prática, muita gente pode chegar a duas semanas diretas de trabalho sem nenhuma folga efetiva.

Considerando que as grandes cidades brasileiras enfrentam desafios de mobilidade urbana, os trabalhadores podem passar de 1 a 2 horas por dia no transporte público, deslocando-se até o trabalho - dependendo da cidade, das condições do trânsito, do clima - o que diminui ainda mais o tempo restante para o lazer e o descanso. Em cidades grandes, como São Paulo e Rio de Janeiro, o próprio transporte público é fonte de stress, com trens e ônibus lotados e longas filas para embarque.

É importante ressaltar que o Brasil conta com um Sistema Único de Saúde (SUS), público e gratuito, que atende toda a população. Fundamental para garantir o acesso à saúde para famílias de baixa renda e da classe trabalhadora, o SUS enfrenta problemas com relação à alta demanda, o que implica em muito tempo de espera para agendamento de consultas e exames, que pode variar de 30 a 90 dias. Os agendamentos pelo SUS não podem ser desmarcados ou reagendados, sob pena de perder o direito ao atendimento e voltar ao fim da fila, isto é, mais meses de espera por uma nova consulta. O acesso à saúde pode ser prejudicado caso não seja possível ter um dia de folga no dia agendado para atendimento no SUS.

Fonte: Renan Conceição.

Dessa forma, a escala 6x1 penaliza os trabalhadores e trabalhadoras, usurpando o direito ao descanso e ao lazer, a possibilidade de repor suas energias, ir em consultas médicas, passar tempo com sua família, acompanhar os filhos ou pais idosos. Tendo em conta as desigualdades de gênero na divisão do trabalho doméstico e de cuidados, que sobrecarrega sobretudo as mulheres, essa jornada se torna ainda mais pesada para elas, que passam seu único dia de folga trabalhando em casa. Essa dinâmica perpetua a sobrecarga física e emocional das mulheres, sobretudo as que são mães, agravando problemas de saúde e limitando oportunidades de desenvolvimento pessoal ou profissional, como acesso a cursos. Além disso, fica inviabilizada a participação em momentos familiares como festas de aniversário, confraternizações com amigos e feriados.

Trabalhar 6 dias na semana e descansar apenas um tem consequências para a saúde física e mental dos trabalhadores, pois eles são sobrecarregados pela jornada de trabalho, somada ao tempo que passam no transporte público se deslocando e a necessidade de se dedicarem ao trabalho doméstico, fundamental para a vida - lavar as roupas e uniformes, manter a casa limpa, fazer compras, cozinhar (muitas vezes é no dia de folga que os trabalhadores preparam as marmitas para a semana inteira), passar tempo com a família e descansar. Uma pesquisa da International Stress Management Association(Isma-BR), realizada em 2021, apontou que o Brasil foi o segundo país com mais casos de burnout, que atingiu cerca de 30% dos trabalhadores.

Os efeitos dessa escala são visíveis no mercado de trabalho do turismo, hospedagem e alimentação, que há anos lida com uma "dificuldade com mão de obra". Essa dificuldade se refere à grande quantidade de vagas ociosas e à alta rotatividade de funcionários. Os empresários e gestores desse setor sabem, no entanto, que a escala 6x1, aliada aos baixos salários pagos são os principais motivos pelos quais esse “problema” com a mão de obra não é resolvido. Pesquisas têm demonstrado que a redução da jornada de trabalho aumenta a produtividade das empresas: trabalhadores mais descansados trabalham com mais disposição, os níveis de absenteísmo caem, a rotatividade diminui. As pessoas querem ter uma vida digna, e isso implica tempo para se dedicar ao lazer, à família e a si mesmas. Toda uma vida que, de fato, quer ir muito além do trabalho.

Considerando a pesquisa sobre turismo divulgada recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), segundo a qual em mais de 80% dos lares brasileiros ninguém viajou em 2023 e os principais motivos para tal (falta de dinheiro e tempo), a luta pelo fim da escala 6x1 e pela redução da jornada de trabalho para 36 horas sem redução de salário precisa ser travada por todos que desejam fortalecer o turismo doméstico brasileiro.